Caro Professor


Este blog nasceu após muitas conversas com os colegas professores, no cotidiano das escolas, nas salas dos professores, nos corredores, nos cafezinhos, como também em muitas reuniões.
Fomos descobrindo que a Ideologia, identificada com o neoliberalismo, tornara-se nossa maior inimiga, muito mais até que o próprio Sistema e do governo que o mantém.
Descobrimos que a luta concreta está no ter a consciência de toda influência ideológica no fazer a educação, na atuação dentro da sala de aula, no discurso pedagógico do professor. E que a fala e o agir dos dirigentes governamentais têm se prestado para a manutenção do espírito capitalista na educação.
Longe de nós o fanatismo esquerdista. O problema é que a culpa da educação andar capenga fica somente nas costas do professor. As Secretarias de Educação têm um discurso confuso que utiliza linguagem da esquerda para manter posicionamentos de direita, deixando a impressão que deram toda contribuição e subsídios para que a educação seja transformadora dessa sociedade consumista e do lucro, onde o ser humano vale menos que o capital. Daí este blog que ora apresentamos para sua apreciação e principalmente para sua opinião e debate.

Última atualização em 07 de agosto de 2011

quarta-feira, 13 de abril de 2011


BALAS QUE FEREM 
Dias atrás, afogado na burocracia exigida pelos gestores empresariais da educação pública, fui “atrapalhado” por uma professora do 1º ano do ensino fundamental 1, trazendo para a sala da direção/orientação pedagógica duas alunas diante das quase mil e duzentas matriculadas nesta escola da periferia de Sorocaba. A professora, profissional por excelência e comprometida com a educação dos seus alunos, pediu para que eu as orientasse pelo “delito” que cometeram, o qual estava sendo comentado pelo restante da classe.
Deixei de lado a urgência da conclusão dos gráficos referente à frequência dos professores nas HTPCs dos anos de 2009 e 2010, enfim era passado, e passei a interrogar as alunas sobre o ocorrido, no presente. Aqui cabe uma rápida descrição fisionômica das duas meninas que não passam de sete anos de idade, apesar de ter aprendido com meus pais que não se deve julgar as pessoas pela aparência, mas neste caso não se trata de julgamento, mas constatação de uma difícil situação sócio-econômica expressa nos olhares daquelas meninas que sem nenhum exagero poderiam ser capa de um próximo livro do fotógrafo mineiro Sebastião Salgado.
Sentadas nas cadeiras da inquisição, dei início ao interrogatório:
“O que vocês fizeram para vir “passear” nesta sala? (cheia de papéis e não de brinquedos)”.
As duas com olhares arregalados, uma com olhos tão negros como a pele da outra e a outra com olhos tão opacos quanto aos cabelos longos da sua amiga.
Repeti a pergunta:
“O que aconteceu? Qual o motivo de virem para cá?”
Uma das alunas, entre lágrimas silenciosas que lavava seu rosto manchado de verminoses, com voz baixa e culposa como se fosse responsável pela explosão das torres gêmeas me disse:
“Eu pegui duas balas que estavam no armário aberto da professora da manhã!”
No auge da minha formação didático-psicológica, disparei algumas perguntas de cunho ético e moralista, entre elas a mais importante:
“Por que você pegou as balas?”
A resposta é óbvia, mas precisou ser dita entre lágrimas para o orientador pedagógico compreender:
“Porque tava co vontade! E di uma pra ela!” (apontando a colega).
A cena poderia ser “congelada” e publicada nos programas televisivos de assistência social como criança esperança e outros. Mas a inquisição não parou por aí, afinal, elas vieram para receber orientações sobre o “delito”.
Então, pensei, poderia culpar a professora que por descuido deixou o armário aberto? Ou por ter trazido balas num ambiente infantil? Poderia desconversar a queixa da professora que trouxe as alunas, por considerar ser um exagero docente dar importância ao furto de duas balas? O fato é que as crianças estavam ali e numa situação de culpa diante do julgamento do restante da classe.
O que dizer? Como orientar essas crianças levando em consideração o contexto sócio-econômico? Lógico que usei o caminho da justiça social e repreendi, com ternura, mas repreendi as crianças pelo furto das balas, porque elas não podiam pegar coisas que não lhes pertence. Até dei um exemplo da minha infância dizendo que às vezes eu ia à feira com minha mãe e tinha vontade de comer aquelas suculentas e avermelhadas maças argentinas, mas eram bem mais caras que as bananas e laranjas compradas à dúzia. Então voltava para casa silenciado e resignado tendo o cuidado de não transparecer para minha mãe nenhuma sensação de vontade, pois sabia que isso a entristeceria.
Assim, terminei minha orientação com as alunas “infratoras”, dizendo-lhes que não podem pegar o que não lhes pertence, isso é furto, e a sociedade penaliza as pessoas adultas que fazem isso, por isso elas precisavam aprender desde pequenas que não se deve mexer no que não é seu. E para “premiar” essas crianças que me comoveram com tanta honestidade em falar de seu “delito” disse que quando elas tivessem vontade de comer balas poderiam pedir para mim que eu daria a elas por meio de seus pais.
Essa história e tantas outras da vida real nas escolas públicas e periféricas têm tudo para não ser percebida no cotidiano escolar, mas neste caso, foi percebida e as crianças foram orientadas a serem justas apesar de serem frutos da injustiça social. Foram orientadas a crescer dentro da ética social de uma sociedade desigual e, portanto sem ética. Nenhuma ética que conheço justifica riqueza/pobreza.
E daí pensei, mas quanto o mundo ainda é ético? Ou melhor, quanto que as pessoas éticas e justas conseguem sobreviver diante da insanidade social?
A escola está a serviço de colaborar para a formação do cidadão ético, mas quanto essa escola ensina que a ética está sendo exceção na sociedade pós-moderna?
Que tipo de ética a sociedade exige dos seus cidadãos, porque as crianças não podem roubar balas da professora, mas verbas da educação podem ser desviadas em exageradas faturas de parcerias?
Mas se alguém, togado de gestor, ouvisse meus pensamentos fatalmente seria advertido. Depois conclui. Pelo menos essas balas ferem, mas são diferentes das do Rio de Janeiro. E no diminutivo da barbárie sosseguei!
E aí, colegas de trabalho, professores e coordenadores, qual seria sua orientação? Use o espaço deste Blog e opine!
(Wansilves trabalha na coordenação em escola pública)

3 comentários:

Evandro Sanguinetto disse...

Bem... parece que não surgiram (ainda) muitos comentários de Sorocaba.
Mas o blog já viajou e chegou em outras paragens. Comento eu então, já que o mesmo é público e publicamente convida.
Com certeza avançamos muito em muitos pontos. Em outros, no entanto, permanecemos feito baratas tontas, buscando caminhos que apenas reproduzem velhas anomalias. E o fazemos simplesmente por não entendermos que o novo se faz com o novo. Velhos padrões não são novos padrões. Isso significa que plantar feijão resulta em feijão. Se quisermos milho, de nada adianta plantar feijão transgênico, usar novos venenos na lavoura de feijão, arar a terra com máquinas mais possantes e utilizar colheitadeiras de feijão - para todas essas variáveis o que se colherá ao final é apenas feijão. Então vá lá a grande descoberta: para colher milho é preciso plantar milho.
Em outras palavras: para mudar o que se colhe em educação é preciso mudar o padrão subjacente ao processo educativo. Mudar os valores de base.
E quais são esses valores?
Muitos. Um deles diz respeito ao capital. Nossa sociedade o coloca acima de tudo o mais. E se surpreende quando ligamos a televisão e percebemos que a vida não vale mais que alguns tostões. Não há surpresa nisso. São os valores que defendemos e ensinamos no cotidiano de nossas escolas. Se o capital, o dinheiro (e seus associados diretos: poder, posse, materialismo, etc) está acima de tudo... todo restante está abaixo dele. E o que é esse tudo? Oras, tudo é tudo mesmo: compaixão, entendimento, diálogo, amor, Vida – tudo! Tão simples e tão difícil enxergar.
Ao ler o texto me pergunto se as coisas estão em seus devidos lugares.
Uma criança pega duas balas e compartilha uma com sua amiga. A leitura da professora é a de que cometeram um "delito" e as entrega ao diretor da escola. No mundo adulto isso equivaleria a encaminhar o "delinquente" ao juiz.
Os valores que a escola reproduz é "o dinheiro acima de tudo" e se vocês não tem dinheiro para comprar balas, então não as podem ter. E para garantir que assim seja, as coloca diretamente perante o juiz, para que este lavre a sentença, que espera-se seja dura.
“(...) capa (...) de Sebastião Salgado (...). As duas com olhares arregalados, uma com olhos tão negros como a pele da outra e a outra com olhos tão opacos quanto aos cabelos longos da sua amiga.”
Nenhum julgamento, apenas reflexão (somos frutos do meio que nos forma): fossem as meninas capas de Caras, Playboy, Capricho, Boa Forma e “As duas com olhares sensuais, uma com olhos tão verdes como a esmeralda da outra e a outra com olhos tão brilhantes quanto a tiara de diamantes da amiga” elas seriam encaminhadas para julgamento por cometer o delito de pegar duas balas?
E um valor humano tão importante e fundamental nos dias de hoje que foi solenemente ignorado tanto pela professora quanto pelo diretor: “Porque tava co vontade! E di uma pra ela!”
O “delito” foi pegar duas balas. A grandeza do coração, da pobreza, da miséria que se supera e compartilha foi “dar uma bala para a amiga”. A leitura toda ficou no “delito”. A grandeza toda do compartilhar mesmo na miséria, solenemente ignorada.
- Ponham-se em seus lugares! – seria a tradução de tudo o que foi dito.
- Aprendamos a compartilhar os poucos e doces momentos de nossas existências – poderia ter sido o aprendizado para professora e diretor.
Realmente precisamos colocar em xeque os valores aprendidos e difundidos com o Neo Liberalismo!

CAEP disse...

Obrigado. Seu comentário é muito valioso. Apenas ressalto um único pontinho: o professor coordenador ficou entre a cruz e a espada ao ter que executar uma "ordem" neoliberal sendo que ele é anti-neoliberal, ele se viu obrigado a dar uma lição de ética numa sociedade que além de não ter ética obriga que as crianças na escola a aprenda antes de aprender a falar corretamente. É uma exigência absurda. Mas vc tem toda razão, se quero milho não adianta aprimorar a roça de feijão.

José Haroldo disse...

Evandro,

Concordo com suas reflexões. O fato da menina ter compartilhado a bala também me chamou a atenção no momento da Leitura. Pensei na sua generosidade, e se de fato o ato era realmente "criminoso". O relato feito expõem sem medo os dilemas que passamos no nosso cotidiano. E nos mostra o quanto estamos impregnados pela lógica daquilo que combatemos.
Provocador o relato e provocador o comentário. Estímulos para as nossas reflexões.

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